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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A Triste Arte de Enganar

A triste arte de enganar
Publicado em 30.12.2009
Fátima Quintas
fquintas84@terra.com.br

O champanhe explode, os cálices tilintam, as esperanças se renovam, a vida sugere recomeços. Os prelúdios do ano-novo se avizinham. Mudamos nós? Esta talvez seja a grande pergunta a ser feita no advento de 2010. O Brasil carece de alcançar uma consciência política capaz de reverter um quadro demasiadamente lúgubre. Não quero pensar que as luzes estejam apagadas e que já não floresça um ponto de claridade no fundo do túnel. É hora de mudar. E, para mudar, não basta que o calendário avance na inevitável cronologia do tempo. A passagem das horas acontecerá, alheia à nossa vontade. O que depende de nós é uma iminente atitude ética em face do descalabro que avistamos todos os dias. O caos se instala imbuído de desacertos e truculências políticas.
Fechar os olhos para a desonestidade reinante é ato de covardia. Acreditar que tudo é natural, ou seja, naturalizar a corrupção corresponde a uma vilania sem nome. E pior: admirar os espertos, aqueles que são astuciosos na prática do ilusionismo, enganando, mentindo, sofismando... equivale a subscrever o descalabro social. As pessoas íntegras são vistas como abobalhadas, sem inteligência suficiente para driblar o jogo rotineiro, chamadas pejorativamente de "boazinhas", o que vale a dizer: medíocres, monótonas, desprezíveis. Pesquisa divulgada pelo Ibope, relativa à receptividade de personagens de novelas, aquilata que os protagonistas dignos e prudentes são relegados a planos de somenos importância, considerados desatraentes, insossos, sem charme. A esperteza, essa, sim, tem o feitiço das ilícitas vitórias. E a vida só tem sabor quando dotada da sagacidade do sucesso. Vencer de qualquer forma, enriquecer à custa de trapaças, exercitar a arte de enganar dizem de atributos que vão ganhando espaço no cenário nacional. Afinal, esconder dólares nas cuecas, nas meias, ou em outros íntimos refúgios não surpreende ninguém. Falácias e manobras se propagam, aceitam-se deploráveis justificativas, elitizam-se impunidades, o poder adquire inaceitáveis imunidades - o crime do colarinho branco inexiste. E os destemperos políticos transformam-se em meras anedotas que servem de distração à miséria humana.
O leitor naturalmente se perguntará por que falar disto em época festiva, antes mesmo do ano iniciar, na calada dos últimos dias de 2009? Pode parecer estranho. Não o é. Simplesmente porque é chegada a hora de contabilizar o ano velho e de planejar um novo cronograma. O conceito de mudança não pode ser apenas uma figura de retórica ou transitório movimento de euforia e de atordoamento em período ungido de falsas solidariedades. Ser solidário é comungar de ideais comuns, é abraçar o outro com mãos disponíveis, é compreender a rede social na sua mais profunda estrutura. O cristianismo prega a igualdade e a justiça social, longe de perversas distorções que só favorecem o descrédito do homem diante da própria humanidade.
A honestidade não pode ser uma virtude eletiva - Ruy Barbosa já anunciava tal inversão. Faz parte intrínseca do quadro ético que sedimenta a personalidade de cada um. "Gentificar-se" é o único caminho da humanização, da visão cristã do amor, da comunhão de uma perfeita alteridade em que os valores condignos às relações afetivas prevaleçam e se consolidem. O mundo depende do homem, nada mais. E dele se aguardam sentimentos mais puros que venham a justificar a história da sua existência.
Que os cálices brindem à mudança verdadeira e não ao malabarismo de condutas absolutamente repulsivas. Que a paisagem política se assente em dimensões mais saudáveis e menos egocêntricas. Que a vida pública não seja sinônimo de ultraje social, tampouco de culto aos desvarios e insanidades pessoais. Só assim o Brasil e os brasileiros poderão orgulhar-se da sua nação. Utopia? Talvez 2010 opere o milagre. Vale a pena repudiar o espetáculo tragicômico da arte de enganar.
» Fátima Quintas é da Academia Pernambucana de Letras

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